Saturday, May 31, 2014

NÓS SOMOS O QUE OUVIMOS! (E COMO OUVIMOS...)

NÓS SOMOS O QUE OUVIMOS! (E COMO OUVIMOS...)
Por Mauricio Zottarelli

(texto originalmente publicado na Revista Modern Drummer Brasil, Maio/2014)
Olá, amigo! Nesta postagem eu gostaria de falar sobre algumas ideias que vêm me intrigando. Explico melhor. Algumas situações recentes me fizeram pensar em como nós todos (incluindo a nova geração de músicos e artistas que surge agora) escutamos música. Como, onde, de que forma, com qual frequência e, obviamente, como isso influencia nossa maneira de tocar e expressar nossa arte e nossa voz.
Portanto, vamos deixar um pouco de lado os exercícios técnicos, as partituras, nossa bateria e a sala de estudo. Vamos analisar um pouco como estamos ouvindo e assimilando a música atualmente. Em primeiro lugar, eis algumas dessas situações a que me refiro acima:


1) Em uma conversa recente com um amigo que dá aulas para estudantes do ensino médio em uma escola no estado de Massachusetts, nos EUA, ele me contou o seguinte: alguns de seus alunos (quase que diariamente) se reúnem em grupos no corredor da escola, com um toca-discos (sim, LP!) antigo. O pessoal traz os LPs emprestados dos pais, e também coisas raras que encontram por aí, e ficam escutando música, em grupo, durante os intervalos. Enquanto eu fazia minha cara de espanto e processava esse fato, meu amigo dizia que achava que os jovens talvez estivessem meio “cansados” de ouvir música em seus telefones celulares e das distrações que esse novo meio proporciona.

2) Quando eu estava estudando na Berklee College of Music, um de meus professores falou sobre certos discos que eu tinha de ouvir. Seguindo meu interesse pelo jazz, e com a finalidade de ampliar meus horizontes e assimilar o vocabulário pertinente ao estilo, ele recomendou que eu comprasse alguns desses discos. Foram meses de análise e muitas repetições de certas faixas e certos momentos desses discos, em que muitas vezes o objetivo era não prestar atenção exclusiva na bateria, necessariamente. Explico melhor a seguir.

3) Durante os últimos anos, todos nós acompanhamos o surgimento de um grande número de vídeos de “shredding”, em que os bateristas se reúnem para tocar juntos/jam/trocar solos, etc.... Em várias conversas com outros bateristas, alunos, amigos e companheiros na cena musical de Nova York e também no Brasil, tenho notado o quanto vários desses músicos são “obcecados” por vídeos de solos de bateria, vídeos cheios de técnica e demonstrações de extrema destreza e facilidade no kit, feitos por bateristas fenomenais. 


Tenho vários amigos que ensinam música para jovens e adultos, tanto individualmente ou em escolas e universidades, e a impressão é a mesma, por todos eles... De uma maneira geral, os jovens bateristas de hoje em dia são extremamente técnicos, e possuem alto nível em seus instrumentos, e fazem coisas incríveis na bateria etc., etc. Mas, por outro lado, muitos não sabem absolutamente nada sobre harmonia, sobre percepção auditiva, não conseguem “ouvir” e/ou reconhecer um acorde sequer ou cantar uma nota acompanhados do piano/guitarra. Não entendem sobre “forma” das músicas (AABA lhes parece um estranho código secreto), e, consequentemente, não conseguem tocar com bandas de uma maneira eficaz e musical. Muitos deles querem tocar jazz tradicional, aprender a linguagem e tudo mais, mas não conhecem seus principais artistas e/ou suas principais obras...

Acho que já deu para perceber aonde quero chegar, não é? Traçando-se um paralelo com nossas próprias vidas, horários, nosso trabalho e nossa correria diária, sinto que necessitamos parar um pouco e refletir sobre como anda o nosso hábito de ouvir música — o que estamos ouvindo, como estamos ouvindo e assimilando, e com que frequência e o quão atentamente. Hoje é muito comum ter músicas/playlists (nossa discoteca!) em nossos telefones celulares (imaginem só, os leitores que já tinham nascido e se lembram dos anos 70 e 80, quanta diferença!), e tudo passou a ser extremamente conveniente e fácil. Mas, por outro lado, perdura o costume da “multitarefa” e muitas vezes não estamos nem prestando muita atenção ao que estamos ouvindo, pois estamos fazendo mil outras coisas ao mesmo tempo. Ao referenciar os anos 80, me lembro de comprar um disco de vinil e correr para casa, e escutá-lo várias vezes, do começo ao fim, de olhos fechados. Depois eu decorava as letras, e os arranjos, lia a ficha técnica mil vezes. Imaginava estar presente nos shows do artista ou banda, e prestava atenção nos diferentes instrumentos e na orquestrações em cada trabalho. Cada disco era uma experiência, um sonho, uma viagem que poderia durar dias, meses... Se conversarmos com pessoas de mais idade, que se lembram e viveram na era do rádio, imagine então! Sem televisores, o áudio era a ferramenta de “transporte”, o meio pelo qual as pessoas viajavam, sonhavam e se divertiam. A música tinha um poder gigante! Infelizmente, hoje em dia acredito que a tremenda facilidade ao acesso a tanta música (pela internet, mídias sociais, streaming, etc...) e a alta tecnologia dos telefones celulares, computadores, tablets — aliados à hiperatividade em nossas vidas, e à eminente dificuldade de se concentrar em uma coisa só, dificultam nossa experiência quando ouvimos música, prejudica nossa assimilação do conteúdo artístico da mesma e, de uma maneira geral, torna nosso hábito de ouvir música muito superficial e vago.

No nosso caso, caro leitor, como músicos profissionais e/ou apaixonados pela música, a situação é mais bizarra ainda. Analisemos, por exemplo, quando foi a última vez que ouvimos um CD, ou uma playlist, um MP3, ou até um show ao vivo, realmente concentrados em seu conteúdo? Uma música/artista de que gostamos, tocando em nossos fones de ouvido, ou nossa banda favorita em um estádio de futebol. Quantas vezes ouvimos esse trabalho com total comprometimento e atenção? De olhos fechados? Sem pegar nosso celular para checar o e-mail, atualizar nosso Twitter, olhar o Facebook ou o Instagram — coisas essas que provavelmente já fizemos há 30 segundos?
Ou tentar “filmar” o show para “ver depois” ou compartilhar nas redes para os amigos “verem”?

Gostaria de propor um experimento, uma tentativa de nos desligar um pouco dessa realidade frenética que vivemos, e relaxar. Vamos escolher um disco de que gostamos, mas não ouvimos há muito tempo, ou algo que está na nossa lista “para ser ouvido”, mas que ainda não tivemos tempo de fazer. Pode ser também uma playlist no seu iTunes ou MP3s no seu telefone. Reserve um tempo para você — sem distrações, desligue o telefone de casa, coloque o celular no modo avião etc., etc. Durante a próxima hora, é só você e sua música. Aperte o play e boa viagem.
(Pode ir lá! Eu espero...) 

E então, como foi? Conseguiu ouvir a playlist toda? O CD inteiro? Sem interrupção? Concentrado? Relaxado? Ou caiu no sono e não ouviu nada? Não tem problema. O importante é reservar esse tempo para você. Com certa frequência, você vai se condicionando a esses “breaks” da realidade, e vai se concentrando cada vez mais na música, e se deixando levar. O intuito é relaxar e viajar dentro de nós mesmos, quase como uma meditação — mas a diferença é que nesse exercício, o objetivo principal é se concentrar na música, na gravação. Vamos tentar visualizar o estúdio, os músicos tocando, a música sendo criada pela primeira vez. Vamos analisar as diferentes partes, os diferentes instrumentos. O arranjo, os solistas, a interação entre os músicos. A seção rítmica, o ritmo. O que cada faixa nos parece, o que nos faz lembrar, a emoção que nos traz cada composição. O que nos move, o que gostamos e o que não gostamos sobre certa música, canção ou performance.
Crie o hábito de fazer isso algumas vezes durante a semana, e tome nota de tudo que achar interessante. Eu tenho feito isso algumas vezes recentemente, e o resultado é sempre fascinante. De repente, escuto partes do arranjo de certas músicas em que nunca tinha reparado antes, ou solos, ou melodias que de repente “estalam”. Certas texturas em certos sons, timbres e instrumentações. As letras das músicas e a interpretação da melodia pelo cantor/solista. Grooves, levadas e as escolhas que certos bateristas fazem em relação ao que tocar, e onde tocar. O que teríamos feito no lugar deles? Detalhes de cada faixa e o som de cada produção. Mixagem, balanço dos diferentes instrumentos na faixa em questão. Quem são os músicos que estão tocando? Eles combinam de maneira efetiva como um grupo? Tocam bem juntos? Ou às vezes parece um concurso para ver quem “fala” mais alto e mais rápido?
Enfim, coisas desse tipo provavelmente vão aparecer nessa nossa audição mais cuidadosa.

Alguns de vocês podem estar pensando: “Mas isso é muito técnico, é muito analítico, música tem que ser mais instintiva. Música é pra dançar, pô...”.
Claro, não estou dizendo que você vai ouvir música sempre assim, ou que qualquer estilo de música vai despertar seu interesse e curiosidade dessa maneira. Tem muita coisa por aí que é feita sem o menor cuidado, e com quase zero de conteúdo. Daí, vai se ouvir o quê? Analisar o quê? A proposta aqui é darmos uma chance a nós mesmos de assimilar as coisas boas e aprender. Acredito que tocar bem a bateria, e tocar bem junto com outros músicos, requer mais do que ficar trancado num quarto de estudo praticando dez horas por dia. Claro que isso é importante, e vai lhe dar um nível de técnica e proficiência no instrumento muito alto, mas será que é só isso? Música é só estudar, nós mesmos, sozinhos, isolados? Na minha humilde opinião, música é ouvir. Tocar e executar vem logo em seguida, mas ouvir é primordial. E ouvir a história, ouvir nossos mestres, ouvir os diferentes estilos, a cultura e a arte que estão aí, à nossa disposição. Assimilar tudo isso, com paciência e perseverança. Sem distrações. Com total comprometimento. Nós somos o que ouvimos, mas obviamente, como ouvimos é fator extremamente importante nessa nossa caminhada e na busca incessante pelo nosso aperfeiçoamento enquanto profissionais e amantes da arte.
Um abraço e até a próxima….mz
I am a drummer - percussionist - composer - artist based in New York City, NY. Please visit my website: http://www.mzdrums.com